Considerações sobre a vontade austera

Proponho uma pequena exploração sobre a noção (ou as noções) de vontade nos Ensaios de Montaigne. Trata-se de uma abordagem indireta, na medida em que não ofereço nenhuma reconstrução candidata a representar um conceito montaigniano de vontade. Procuro, em vez disso, nexos argumentativos a partir das afinidades temáticas entre I.19 (“Que apenas após a morte se deve julgar sobre nossa felicidade”) e II.2 (“Da embriaguez”). Nesses capítulos, flagram-se diferenças importantes na posição do ensaísta a respeito da morte, mesmo se nos ativermos apenas aos estratos textuais de 1580. No primeiro deles, exalta-se o ânimo firme do indivíduo no instante de sua morte como o único capaz de julgar favoravelmente todo o restante de sua vida. No segundo, ao contrário, suspeita-se das motivações subjacentes tanto a casos ordinários de coragem quanto a ações exemplares de destemor diante da morte. Em minha leitura de II.2, a comparação feita por Montaigne entre o estado ébrio e o desprezo pela vida (tal como ensinado pelas doutrinas filosóficas da antiguidade) abriria o caminho para uma possível desarticulação de aspectos do perfeccionismo moral estóico de certa maneira ainda constitutivos do pensamento dos Ensaios nos livros I e II. Questiono se de tal desarticulação poderíamos inferir o abandono de toda forma de perfeccionismo moral. Por fim, sugiro de que modo a resposta poderá depender de uma apreciação do papel do absoluto na obra – entendido já não apenas como limite exterior do julgamento, mas em sua relação com os objetos do discernimento e da volição.
Marden Müller (UFRGS)